[en portugués] O corona como metáfora
Por Miguel Thompson, diretor Acadêmico da Fundação Santillana no Brasil
Uma das primeiras representações de divisão do conhecimento que temos notícia foi a partir das reflexões de Pitágoras de Samos, que acreditava que deveríamos separar o entendimento do mundo partir de duas orientações: uma focada no âmbito humano e outra focada no âmbito natural. Esse modelo influenciou toda a filosofia clássica Grega. Na forma de “Artes liberais Clássicas”, retórica e gramática se organizavam em um campo, geometria e astronomia em outro. Na Idade Média, os currículos se dividiram no Trivium (lógica, gramática e retórica) e Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia). A segmentação curricular se acentua no Iluminismo, movimento cultural iniciado na Europa no século XVII, que dá origem a muitas das especializações dos currículos escolares contemporâneos. As artes liberais se transformaram em Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Linguagem e Matemática.
A escola pública nasceu nesse processo de especialização e fragmentação do conhecimento. Esse arranjo curricular foi fundamental para o desenvolvimento dos paradigmas disciplinares e o aperfeiçoamento e aprofundamento do conhecimento acadêmico. Os meios de produção se beneficiaram dessa maneira de estruturar o mundo, aprofundando os processos de divisão e especialização do trabalho para o aumento de eficiência das linhas de montagem.
Nessa longa historia, de construção de modelos de pensar, da Grécia antiga à revolução industrial, aconteceu um grande processo de desenvolvimento e aperfeiçoamento do conhecimento especializado, que muito beneficia nossa espécie. Gerações e gerações favoreceram-se dessa forma de organizar o mundo como conhecemos e devemos muito a esses modelos curriculares.
No entanto, se construir toda uma gama de protocolos e currículos escolares hiper estruturado foi ótima para um mundo mais estático, essa forma de organizar o conhecimento não é mais tão eficiente para um mundo volátil, incerto, complexo e ambíguo (VUCA, no acrônimo em inglês) que vivemos.
Todo século XX foi um grande ensaio para que uma forma de pensar mais integrada se estabelecesse. A grande mobilidade decorrente dos meios de transporte urbano e a imediata conexão global decorrente dos meios de comunicação trouxeram aos indivíduos e a sociedade uma intensa troca de conhecimento, subjetividades e valores culturais sem precedentes. O ciclo da natureza não era mais o único agente de previsibilidade e imprevisibilidade. Novos elementos desequilibrantes do cotidiano surgem mais rápidos que as estações do ano, mais contundentes que uma tempestade. Ideias como a Teoria do Caos, na Química, a Hipótese de Gaia, na Biologia, o Pensamento Complexo, na Filosofia e a Modernidade Líquida, na Sociologia, puseram em dúvida um modelo de pensamento baseado no paradigma da especialização.
Muitos fenômenos complexos do século passado e do início dos anos 2000 exigem mais do que uma visão fragmentada para sua compreensão: a crise econômica de 1929, o lançamento da bomba atômica, o ataque terrorista das torres gêmeas ou a quebra econômica de 2008 são fenômenos complexos por excelência e demandam explicações ancoradas em diferentes pontos de vistas, conectados e integrados, para serem compreendidas.
Agora, um dos maiores desafios que a humanidade enfrenta é o contágio planetário do coronavírus. A rápida mudança de comportamento social, psicológico, econômico e comportamental que a pandemia nos infligiu evidencia dramaticamente que os paradigmas milenares de pensamento devem ser revistos e que todo o pensamento gestado sobre a complexidade deve ser utilizado para compreensão da nova realidade.
A escola precisará decisivamente discutir o modelo com que forma as novas gerações, ainda predominantemente influenciada pelos paradigmas da linearidade, fragmentação de tempos e espaços e hierarquias de poder e de conhecimento. As reformas educacionais no mundo vêm apontando para a necessidade de um pensamento mais aberto, desenvolvido coletivamente e focado na complexidade e na integralidade do ser. Conceitos curriculares como o trabalho por projetos, orientações por temas transversais, resolução de problemas ou análise de casos são importantes elementos para reconfigurarmos modos de pensar, agir e sentir frente às emergências do mundo. As crises sistêmicas serão o novo normal, no campo sanitário, político, econômico, ambiental, nas relações urbanas ou em qualquer área do fazer humano.
*Texto originalmente publicado na edição 158 da revista Direcional Escolas