[en portugués] Após 20 anos, uma lei que ainda precisa ser posta em prática para combater o racismo
Nilma Lino Gomes
Em 2023 o Brasil vai alcançar a marca de 220 milhões de habitantes, a maioria formada por pessoas negras (56%). Mas, mesmo após 135 anos do fim do regime de escravidão, a população negra continua enfrentando as mais diversas formas de discriminação e opressão. Desgarradas da sua terra e conduzidas sob violência, as diversas etnias africanas nos deixaram um legado de resistência, conhecimentos e práticas. Sob condições brutais, africanas e africanos recriaram tradições, produziram cultura e trouxeram novos conhecimentos para Américas.
A educação sempre foi um tema central na luta antirracista liderada pelo Movimento Negro para promover mudanças pela equidade social entre brancos e negros em nosso país. A luta arraigada pela valorização da cultura e da identidade negras, realizada pelas organizações negras do início do século XX, ganhou corpo na década de 70. Um novo perfil de Movimento Negro foi se consolidando até os dias de hoje e a denúncia do racismo foi sendo aprimorada junto com propostas de transformação da sociedade e de fortalecimento da democracia. A partir de 1988, com a nova Constituição Federal e o processo de redemocratização, conseguimos avanços importantes. O racismo se tornou crime inafiançável e imprescritível. Mas poucas mudanças houve na educação.
O sistema educacional brasileiro, por décadas, foi forjado para reproduzir o padrão da cultura eurocêntrica, estigmatizando a imagem do continente africano, inferiorizando as pessoas negras, silenciando sobre as suas lutas e apagando o importante papel das lideranças negras. Desse modo, não permitiu que nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos – brancos e negros – pudessem conhecer, refletir e valorizar a história da África e a relação histórica dos povos do continente africano na construção do Brasil que somos.
A gravidade deste silenciamento e omissão permite compreender a importância da conquista do Movimento Negro no campo da educação: a aprovação da Lei 10.639/03. Esta lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), com a inserção dos artigos 26 A e 79 B. tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana nas escolas do ensino fundamental e médio. A mesma lei institui no calendário escolar o dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, data da morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares que nos ajuda a compreender o processo de resistência negra na luta contra a escravidão.
Mais tarde, uma nova alteração determinou a obrigatoriedade do estudo da história e das culturas indígenas por meio da Lei 11.645/08. Assim, os povos africanos e indígenas passam a ter, na legislação educacional, o reconhecimento do seu papel e da sua presença na construção deste país.
Mas com racismo, não há democracia. Por que ainda assistimos diariamente a tantos episódios de discriminação racial nas escolas e na sociedade? Por que as pessoas negras seguem sendo discriminadas nos mais diversos ambientes? Muitas respostas seriam possíveis para essas perguntas. A educação precisa responder: que contribuições têm dado os sistemas de educação na compreensão e enfretamento dessas questões? Qual é a sua responsabilidade no combate e superação do racismo?
Duas décadas não foram suficientes para implementar a mudança de mentalidade e práticas na educação exigida pela Lei 10.639. Trata-se de uma legislação que pode ser compreendida como ação afirmativa e construção de equidade racial na educação. Por isso, para que a sua implementação seja realizada pelas secretarias de educação, pelas escolas e na formação inicial e continuada de professoras e professores foram estabelecidas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino e História e Cultura Afro-brasileira e Africana, por meio do Parecer CNE/CP 03/2004 e Resolução CNE/CP 01/2004 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
Além disso, o Ministério da Educação, por meio de uma mobilização nacional e esforços de várias instituições, como a UNESCO, o CONSED, a UNDIME e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), construiu o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino e História e Cultura Afro-brasileira e Africana, em 2009.
Os sistemas educativos devem cumprir a lei em seu compromisso contra o racismo. Ser antirracista é assumir uma postura pessoal e pública de combate ao racismo onde e quando ele se manifestar, independentemente de sermos negros, brancos ou de qualquer outro pertencimento étnico-racial. E mais, significa entender a riqueza da ancestralidade negra em nós e na conformação histórica, social, cultural e econômica da sociedade em que vivemos, rompendo com os estereótipos negativos sobre a África e a população negra no Brasil e em outros lugares do mundo. Essas são transformações necessárias para todas as pessoas. São essas questões tratadas pela Lei 10.639/03 e suas Diretrizes Curriculares Nacionais. Lamentavelmente, não vemos essa radicalidade presente nos documentos da política educacional mais recente, tal como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Não se trata de responsabilizar as professoras, os professores e sua formação, mas de olharmos para a responsabilidade social e educacional do Ministério da Educação e suas políticas, das Secretarias Estaduais, Municipais e Distrital de Educação. Os Conselhos Estaduais e Municipais de Educação têm um papel a cumprir. Precisamos rever a destinação orçamentária para garantir a realização do trabalho exigido pela Lei 10.639/03. As responsabilidades precisam ser distribuídas pois o não cumprimento da implementação da Lei 10.639/03 é a negação da nossa LDB. Será que refletimos sobre isso?
O antirracismo deve ser um eixo estruturante das nossas políticas e práticas. Somente uma inflexão democrática e antirracista desse porte será capaz abalar estruturas excludentes, historicamente construídas desde os tempos da colonização e da escravidão que ainda perduram entre nós, alimentam as relações de poder e são reeditadas pelo capitalismo.
*Professora titular emérita da UFMG, Ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e consultora para Políticas Antirracistas da Fundação Santillana.